segunda-feira, 28 de maio de 2012

Eterno enquanto dure, uma ova!

Posso apostar que Vinícius de Moraes se revira no túmulo quando ouve alguém (mal) inspirado soltando a pérola “que seja eterno enquanto dure”. Essa é uma das frases mais levianas que já ouvi. Não tem nada a ver com o poema ao qual faz referência, que diz, sobre o amor, justamente o oposto: “que não seja imortal, posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure.” É INFINITO enquanto dure! IN-FI-NI-TO! Não tem nada de eterno, que ridículo! E o pior é que a praga do “eterno enquanto dure” se espalhou de um jeito absurdo: no Dia dos Namorados, tudo quanto é perfumaria estampa a frase na vitrine. Músicas bregas e personagens de novela citam o tempo todo - e citam errado na maioria das vezes.

E não venha me dizer que infinito e eterno são a mesma coisa, porque não são. O universo é infinito, segundo grande parte dos cientistas. Mas isso não quer dizer que seja eterno. Quando, na gracinha que é o Soneto da Fidelidade, Vinícius diz desejar do amor que NÃO seja imortal - posto que é chama -, está justamente negando a eternidade, o “felizes para sempre”. Seu “infinito enquanto dure” é carregado de significado, da singeleza de um sentimento que é tão enorme que não tem fim. É uma dimensão muito mais espacial que temporal. O eterno é puramente temporal. Um sentimento pequenino pode ser eterno. Posso eternamente gostar de você só um pouco. E posso amá-lo infinitamente por dois segundos. Ou por meia hora. E posso sentir uma tristeza infinita que vai passar logo. Infinito e eterno não se confundem.

Por isso chamo de leviana a afirmação “eterno enquanto dure”. Ela renega a pureza dos sentimentos de amor e fidelidade expressos no soneto, pois nada traz de novo além da hipocrisia de quem garante sentimento eterno sem ter lastro para isso. “Olha, hoje eu digo que te amo para sempre, mas é só enquanto durar, tá? Amanhã pode aparecer outra pessoa e tudo acaba...”. É muito diferente de “olha, eu amo você tanto que não tem medida, não tem fim. Pode até acabar um dia, mas neste momento é o maior sentimento que tenho”.

Poucas coisas me irritam mais do que ignorância perpetuada e espalhada em progressão geométrica. Ignorância em si não me irrita (tanto). Mas, quando vem travestida de erudição, é de dar nos nervos. Faça um teste: digite “infinito enquanto dure” (entre aspas) no Google. Aparecem 391 mil registros. Depois, digite ‘eterno enquanto dure’. Aparecem mais de 4 milhões!!! Até alguns anos atrás, a citação certa ganhava... mas algumas músicas ridículas ajudaram a perpetuar a bobagem. É de chorar.

Poucas coisas me irritam tanto quanto ver uma bela obra desvirtuada. Gosto muito de Vinícius de Moraes. Ele foi do infantil ao erótico sem perder a classe. E era tão bacana que, no fundo, acho que nem se importaria tanto quanto eu me importo com essa coisa toda que fizeram do seu soneto. Talvez só risse.

Nas aulas de literatura, às vezes se obriga a estudar o Soneto da Fidelidade, o Soneto da Separação. E a obrigação acaba fazendo com o que os significados se percam. Ficamos tempo demais tentando gravar na cabeça que soneto é um poema de 14 versos, normalmente 4/4/3/3, e não percebemos que um soneto bem escrito é simplesmente uma coisa boa de se ler ou ouvir. Vou escrever o texto inteiro aqui embaixo e, se você quiser, leia de novo. Respire fundo, relaxe e aproveite. E ande sempre com uma pedra no bolso, para quebrar a próxima vitrine que desrespeitar uma composição tão bonita.

 Soneto da Fidelidade
Vinícius de Moraes
(Escrito em Estoril, Portugal, outubro de 1939)

De tudo, ao meu amor serei atento
antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa lhe dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure

Daniela Lepinsk Romio, jornalista viciada em leitura. E-mail: jornalista.daniela@uol.com.br

4 comentários:

  1. Plena anuência! Um abraço. Cláudia C.Abreu

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  2. Que seja eterno enquanto dure, declarou ela. Atribui com isto o que ela considera mais importante na existência, isto é, o não existir. Pois, afinal, se é eterno, nada poderia durar.

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