terça-feira, 1 de maio de 2012

Sofá de mulher magra


Daniela Lepinsk Romio, jornalista, cronista e opositora à ditadura das balanças e calças jeans 40 que parecem 14
Uma das coisas de que ele mais gostava era ficar deitado no sofá da sala. O sofá era fofinho nos lugares certos e tinha braços que nem precisavam de almofada para a gente deitar a cabeça. O assento do meio, um pouco mais afundado que os outros, dava o formato ideal para a soneca durante o jornal. A posição na sala ficara perfeita, depois de muito estudo: deitado, ficava de costas para a claridade da janela, com a cesta de revistas e controles bem à mão. O tecido de algodão azul, já meio desbotado, era confortável no calor e quentinho no inverno.

Uma das coisas que ela mais detestava no apartamento era o sofá velho da sala. O modelo era antiquado, mas sem nenhuma bossa. Fora de moda, como se diz. Os braços, arredondados e fofos, a incomodavam tanto quanto qualquer parte arredondada e fofa que ousasse aparecer em seu próprio corpo. Em tempos de ditadura da magreza, linhas retas eram tudo.

Mas o sofá teimava em ser todo errado. A espuma no assento do meio já estava vencida havia muito, dando a impressão constante de que um hóspede acima do peso (rinoceronte? Elefante-marinho?) acabara de se levantar dali. Mais uma coisa lembrando gordura. E aqueles pés? De madeira, em formato de ânfora grega! Nada podia ser pior. Os seis pés eram seis corpos femininos rechonchudos e voluptuosos a lembrá-la do que aconteceria se ela descuidasse "isso" da dieta ou da academia. Manter seu metro e setenta e cinco de ítalo-brasileira de 33 anos num manequim 38 não era fácil. O tecido azul medonho era só um requinte de crueldade, em meio a tamanha tragédia.

E ele teimava em manter o sofá. Dizia que era o seu canto no apartamento. Onde podia pensar, descansar, resolver palavras cruzadas, assistir a filmes, ouvir música, qualquer coisa. Até sexo já haviam tentado ali, mas ela jamais conseguira se sentir sexy sobre um móvel tão gordo.

Ele viajou por uma semana. Quando entrou em casa novamente, pensou ter errado a porta. Mas o laço e o cartão estavam lá. "Um novo cantinho especial para você", dizia a letra dela no quadradinho de papel sobre aquela aberração quadrada, de braços duros, toda estreita, com revestimento de couro. E branco.

Como é que ele poderia se sentir bem naquele sofá? Já não lhe bastava a mulher, que, a cada ano depois de casada, ficava mais magra, mais reta, mais dura? Agora, seu sofá fofinho e aconchegante se transformara em um sofá de dieta. Um sofá lipado! E de couro. E branco! Como pôr os pés em cima daquele sofá?

Sem seu último elo com aquela casa e com aquela vida, ele se viu sem rumo. Ela chegou e não entendeu o desespero dele. Mais tarde, diria aos amigos que ele parecia ter perdido um parente, não apenas o sofá velho que ela tivera que doar: "Nenhum pregão quis!".

Ele não descansou enquanto não localizou a casa da irmã da faxineira, que ficou feliz em vender de volta, por uma quantia módica, seu recém-ganhado sofá. Vendeu também uma geladeira seminova, pequena, de gente solteira. O sofá e a geladeira foram os primeiros móveis que ele levou para o apartamento novo, em outro prédio, em outro bairro, que ele foi mobiliando sozinho, após longas visitas às lojas de móveis usados. E ele foi feliz de novo.

Ela também tentava ser feliz, em harmonia plena com seu sofá de gente moderna e magra. Mas chorava, às vezes, de saudade, abraçada à velha calçajeans tamanho 44, que ainda guardava escondida no armário e que era sua favorita quando o conhecera, linda e segura de si, num tempo em que era tão jovem, tão inexperiente, tão sábia.

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