terça-feira, 1 de maio de 2012

Pequena contravenção em nome do vício

Daniela Lepinsk Romio, jornalista viciada em leitura

Ela entrou na loja como quem não queria nada. Posso ajudar? Estou só olhando, obrigada. Passou pela seção dos eletrônicos, a seção dos DVDs eblu-rays e outras modernidades. O coração batia muito mais forte quando chegou à enorme seção de livros, em busca das estantes altas que a acolheriam e ocultariam.

Mas as estantes tinham mudado. De uma semana para outra. Sem nenhum aviso. Eram estantes baixas, agora. Na altura dos ombros. Ela, alta, de cabelo arrepiado, com botas de salto alto e uma bolsa enorme, nunca passaria despercebida ali. Não dava para simplesmente se abaixar e fazer escondido. Precisaria deixar para outra hora.

Foi se afastando da seção de livros. Os joelhos fraquejando, o estômago gelado querendo subir pela garganta, os ouvidos latejando e as bochechas ardendo de ansiedade. Cada vez mais devagar, mais indecisa. Até que parou, antes de chegar à porta da loja.

Para disfarçar, fez cara de poxa-vida-acabei-de-me-lembrar e, mais uma vez, tomou o caminho para a seção de livros. Muito depressa, escolheu a estante com menos gente em volta e observou o que tinha por lá. Manuel Bandeira, Paulo Leminski. Estrela da vida inteira, do Bandeira. Já conhecia, mas a capa era diferente. Vai servir, pensou.

Tirou o livro da estante e deu aquela alisada na capa. Com a mão inteira, como quem alisa o pelo de um gato grande e preguiçoso. Seu tipo preferido de capa, com plastificação bem fininha e fosca, que deixa o papel com jeito de encerado, e algumas partes com verniz. Tão bom de alisar. Agora o coração já queria sair pela boca também. Só não pulava porque, na disputa com o estômago para ver quem saía primeiro, os dois ficavam entalados e nenhum passava na garganta. Pura sorte.

Esvaziou os pulmões bem devagar, até o fim. Abriu o livro em qualquer página, fechou os olhos e mergulhou. Cheirou com vontade, papel, tinta, cola, verniz, letras, palavras, versos, paixão, dor, saudade, tudo misturado. Cheirou e cheirou de novo, várias vezes. O ritmo do coração foi voltando ao normal. O estômago parou de dar nó.

Quando os joelhos já estavam firmes de novo, levantou a cabeça e abriu os olhos. Só para encontrar os olhos da vendedora, parada do outro lado da maldita estante anã, olhando diretamente para ela. Meio incrédula, meio reprovadora, com a mão no rádio, na dúvida se aquilo já era caso de tango argentino ou se ainda valeria tentar um pneumotórax. Já leu Bandeira?, disfarçou. Não. É muito bom, deveria experimentar. Sei. A vendedora, cada vez mais desconfiada. Não iria ler Bandeira nenhum. Nem queria saber de gente enfiando o nariz nos livros, depois aparecia algum com sujeira e quem iria pagar? Quem? No dia seguinte, além da placa de “favor não folhear as revistas”, pediria uma nova, dizendo “favor não cheirar os livros”. Cheirou, tem que comprar.

(Texto de 2012, também publicado no Jornalirismo. Baseado em vários episódios reais e constrangedores.)

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