Linhas tortas e garatujas | Daniela Romio
quarta-feira, 19 de março de 2014
Famílias decepadas não podem marchar
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014
À tarde, outro amigo recebe pela primeira vez a filha nos braços.
À noitinha, uma amiga publica o resultado positivo do teste de gravidez.
Tento ver um significado. Mas tenho apenas vislumbres de uma teia delicada, cujas conexões são complexas demais para minha compreensão.
Tristeza não tem fim.
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014
O som do seu sorriso
Mas uma outra menina, de seis anos, foi queimada viva no Maranhão, durante um ataque ao ônibus em que estava com a mãe e a irmãzinha – também feridas pelo fogo. Morreu no hospital, levando consigo o bisavô, que não suportou a notícia do ataque e sofreu um infarto. Levou consigo também parte do coração da mãe, que será obrigada a conviver para sempre com as marcas da barbárie gravadas no corpo. Levou uma parte do coração de cada pessoa que leu sobre o ataque bruto e sem sentido.
Rafael estava nervoso, porque faz pós-graduação nos Estados Unidos e vinha, havia tempos, buscando o direito de falar com a filha, no Brasil. Escrevia cartas quase diárias a ela pelo Facebook, em uma página que chamou de “Ana Julia seu pai te ama”, para que um dia ela pudesse pesquisar o próprio nome na internet e descobrir que o pai a amava muito, sim, e sofria com a distância. Passou sozinho o próprio aniversário. Não deu parabéns no aniversário de nove anos dela. Não conversou na Páscoa. Não ouviu feliz Natal na voz da menina. No início de janeiro, ele se preparou para vê-la por meio de uma webcam.
E uma menina de 16 anos foi queimada viva na Índia, pelos familiares brutos de homens brutos que a haviam estuprado em conjunto. Em duas sessões brutas de horror. Mais uma vez, o país que é referência quando se fala em práticas espirituais elevadas, yoga, hare krishna e outros que tais, mostra que a elevação espiritual não é para todos. O descaso da Índia com suas mulheres e meninas é um crime pelo qual Buda chora sangue.
A conexão com a internet não funcionou e Rafael acabou conseguindo uma conversa por telefone. Sem perceber, a menina faz a pergunta mais delicada de todas, quando Rafael pede que ela sorria de novo. “Como você sabe que estou sorrindo se você não está me vendo?”. Como, menina? Você ainda não sabe, mas a gente percebe quando alguém com quem conversamos sorri. E a maior felicidade do seu pai nos últimos tempos foi ouvir o som do seu sorriso, misturado à sua voz.
Uma menina de 11 anos morreu após ter o cabelo sugado pelo ralo de uma piscina, no Espírito Santo. E outra, de oito anos, em Minas Gerais. As mortes poderiam ter sido evitadas por uma tampa especial. Que custa 50 reais. Mas não é obrigatória. A maioria das pessoas nem sabe que isso existe. Na verdade, a maioria das pessoas nem se lembra que o ralo da piscina existe. Mas essas meninas não foram as primeiras vítimas, e o país segue sem legislação que traga mais segurança à construção de piscinas. E a alegria da brincadeira continua se transformado, vez ou outra, em horror.
Rafael tem esperança. Busca sensibilizar quem lê sua página sobre os riscos da alienação parental – que é quando uma criança tem o pai ou a mãe excluídos de sua vida contra a vontade e sem razões concretas. Rafael obteve a primeira conquista. E o que ele mais temia não ocorreu: a menina foi simpática, amorosa, sorriu muito, disse que quer falar com ele de novo. Não desligou antes do tempo. Uma hora era o combinado – e, após cinco minutos de atraso, foram 55 minutos de redenção.
Rafael com sua menina trazem um pouco de delicadeza e esperança a este início de ano tão triste, violento, cruel. A menina de Rafael ganhou mais chances de sorrir. Nem todas as meninas têm a mesma sorte. Que 2014 finalmente comece, como um ano melhor.
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Daniela Lepinsk Romio, jornalista que escreve sobre coisas distantes, mas não consegue abordar a história do casal que mordeu, jogou no chão e deixou morrer o filhinho de dois meses em Cuiabá. Porque até mesmo a brutalidade precisa ter limite – e aquilo ultrapassou todos . E-mail: jornalista.daniela@uol.com.br
sexta-feira, 7 de junho de 2013
Leminski seu cachorro louco, que bom que você existiu!
Eu tinha 12 anos quando Leminski morreu. Estava começando a conhecer seus escritos. Com os anos, descobri que não sou muito da leitura de poemas. Falta-me paciência, sou da prosa. Bandeira, Neruda, Cecília, Drummond... gosto muito, mas leio pouco.
Agora, Leminski eu posso ler a qualquer hora. A despretensão do texto dele fala direto comigo. Brinco que somos parentes. Meu Lepinsk não tem o último ‘i’ por erro de cartório – quem garante que não houve confusão também entre o ‘p’ e o ‘m’? Quem?
O texto do Leminski é gostoso. Transborda significado, mas o formato é simples como conversa de amigo. Há quem goste do rebuscamento de palavras – esses não vão curtir o Leminski. Eu não. O poder está no texto limpo, simples, direto e genial.
Ele não foi morto a pau e pedra. Nunca chegou aos 70 anos. Mesmo assim, se não viu tudo em sã consciência, meus agradecimentos à insana inconsciência, que permitiu ao Leminski trazer muito mais graça à nossa vida. Viva o cachorro louco!
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
Todas as idades em mim
Às vezes quem comanda é a senhora... aí ela ouve jazz e MPB, lê livros de adulto e deixa de lado as trilogias de mundos fantásticos. Guarda dinheiro na poupança. Acorda cedo, não usa a soneca do despertador, trabalha duro. É intolerante com preconceitos, com discriminação. Lava a louça, arruma o guarda-roupa. Desconfia de quem desperdiça o tempo e a vida, pois tempo é algo que valoriza muito. É ponderada, não fala palavrão, ouve sempre todos os lados e busca soluções factíveis para seus problemas.
Quando a menina assume as rédeas de novo, gasta parte da poupança em sapatos e maquiagens maravilhosas. Corta o cabelo sozinha. Compra um par de botas novas e um anel enorme. Lê livros de criança e se entope de chocolate, brigadeiro e Doritos. Vai à piscina de noite. Toma sol sem protetor e fica ardida. Deixa a gata dormir na cama dela. Deixa a louça na pia. Passa o dia de pijama e pinta as unhas de azul.
O que irrita bastante a senhora. Ela tem muito trabalho indo ao salão para corrigir as barbaridades que a menina fez no cabelo. Tira o azul das unhas e passa nude, muito elegante. Toma suco verde sem açúcar para livrar o corpo das toxinas de tanto Doritos e chocolate. Usa muito protetor solar e mantém os cabelos hidratados e escovados. Mas aprova as ideias que a menina teve para solucionar aquele problema no trabalho. É que a menina é danada de esperta.
Quando ela volta, abandona a escova e usa a cabeleira toda arrepiada de novo. Ouve rock muito alto, mas se emociona com Billie Holiday. Escreve textos sem nexo, joga fora e escreve de novo. A senhora corrige alguns textos, edita, dá sugestões. A menina aceita algumas, outras não. A senhora sorri, mais tolerante com aquela presença barulhenta. A menina se sente tão bem depois de tanto suco verde que vai lá e detona mais uns Doritos. A senhora não se importa.
Leem juntas um livro. As duas se emocionam em passagens diferentes e, às vezes, na mesma passagem... A senhora reza, mesmo sem saber direito no que acredita. A menina, não. Mas ela dança sozinha na sala, no escuro, chorando, e esse é o jeito dela de rezar. A menina tem medos que a senhora não tem mais. Mas também tem coragens que a senhora nunca teria sozinha. Às vezes ela precisa de colo, como toda menina, e a senhora está sempre ali para essas horas também.
Elas têm brigado menos ultimamente. A menina anda um pouco mais doce, enquanto a senhora ficou mais flexível. Bem devagar, vão aprendendo a conviver e a se respeitar. Mas a menina nunca vai crescer e a senhora já nasceu velha. Por isso, o conflito estará sempre lá, para não me deixar cair no comodismo de ter ‘uma certa idade’. Tenho todas, dos 12 aos 60 e mais outras. Mil vezes essa inquietude na mente do que uma vida enquadrada em convenções que nunca vão me comportar.
terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
Cuba, um blog e gente que dá vergonha
Sobre Cuba, pouco sei. Não confio em nenhuma notícia nem estatística oficial de um país onde não existe liberdade de expressão (não, não comparem com o Brasil!) e que fazia de seus cidadãos prisioneiros até outro dia.
Sobre Yoani Sánchez, também sei pouco, embora acompanhe sua história há alguns anos. Ela tem o meu apoio só por se insurgir, por falar, por expor faces da ilha cuja existência os fanáticos teimam em não reconhecer.
Mas estou cheia de gente grossa, que fica dando munição pras Vejas da vida.
Estou cheia de gente que enche a boca para defender Cuba sem ter, nunquinha, pisado na ilha. Que procura justificar os desmandos da ditadura de Fidel - mas sem abrir mão de celular, computador, internet, casa própria, cozinha planejada, carro bacaninha. Falo de Fidel porque, bem ou mal, Raul Castro está permitindo que se acendam lanterninhas dentro do túnel.
Estou com vergonha dessa gente que hostiliza sem dar chance ao diálogo.
Aos nostálgicos por Cuba, tenho uma sugestão: se lá é tão bom, se muda, cara. Faz a mala e vai para a ilha. Aqui, no Brasil, você será bem-vindo de volta, se se arrepender.
Mas pare com esse papel cretino de agredir a blogueira como se ela fosse o Renan Calheiros. É rude, é ridículo, é vexatório.
Daniela Lepinsk Romio, jornalista. E-mail: jornalista.daniela@uol.com.br
quarta-feira, 28 de novembro de 2012
Eu sou bicho, sou força da natureza
Abre parênteses: tenho fotos para provar que Caio nasceu lindo. Não tinha cara de joelho. Nasceu um pouco antes do previsto, então não ficou encaixado e apertado entre meus ossos pélvicos, por isso a carinha sem inchaço, a cabeça redondinha, uma criança de filme. Fecha parênteses.
A médica trouxe o Caio para perto do meu rosto. E aí eu me encostei e cheirei a cabeça dele...
E o mundo parou. Ninguém tinha me avisado do impacto que é o cheiro do filho da gente. Não dá para descrever, mas é uma sensação completamente animal. Eu ainda visualizo o caminho que aquele cheiro quente e meio doce percorreu das minhas narinas até o meu cérebro e pelo meu corpo inteiro, ficando gravado para sempre. Reconheceria o cheiro do meu bebê em qualquer lugar do mundo.
Naqueles segundos eu me descobri bicho. Animal. Irracional. Forte. Poderosa. Brava. Só instinto. E foi muito bom! Ali eu sabia que amaria aquela criaturazinha acima de qualquer outra. Que cuidaria. Defenderia. Educaria. Mataria em sua defesa. Morreria em sua defesa.
Antes que você torça o nariz: ele não estava com cheiro de sangue, nem de placenta, nem dos líquidos todos que envolvem um recém-nascido. Meu filho nasceu com agenesia da mão esquerda e, por isso, foi levado às pressas antes que eu o visse. Foi examinado primeiro e,quando chegou ao meu colo, já estava todo limpinho. Também não era cheiro de sabonete, porque ele não foi lavado com sabonete.
Era simplesmente o cheiro dele, que eu busquei depois durante anos a cada vez que ele passava perto de mim. A cada vez que eu enterrava meu nariz nos cachinhos castanhos do meu leão, sempre identificava o mesmo cheiro, por baixo de qualquer outra coisa: sabonete, shampoo, creminho, bala, chocolate, terra, leite, ou outros odores menos agradáveis.
O mais curioso é que o cheiro do Caio mudou completamente, agora que ele é um adolescente. Claro que ainda o abraço, e muito, mesmo que esteja saindo da Educação Física. Mas prefiro quando sai do banho e se borrifa com os boticários da vida... Sou uma força da natureza – e a natureza sabe das coisas. Ele agora está se transformando em um homem – o cheiro de filhote não existe mais. Ele não precisa mais de tanta proteção, de tanto apoio para tudo.
Mas eu ainda morreria – e, sem dúvida nenhuma, mataria – por ele. Sou um bicho.
Daniela Lepinsk Romio é cronista, jornalista e animal. E-mail: jornalista.daniela@uol.com.br