quarta-feira, 19 de março de 2014

Famílias decepadas não podem marchar

Procrusto tem uma cama feita sob medida. Ele gosta de convidar seus visitantes a testar a maravilha. O problema é que Procrusto gosta das coisas muito certinhas – então, se a pessoa fica menor que a cama, ele estica a pessoa até ajustá-la. Se ela fica maior, o processo é mais rápido: ele corta fora um pedaço da cabeça e do pé. Da pessoa, não da cama.
Mas Procrusto não é apenas um caso extremo de Transtorno Obsessivo Compulsivo: ele joga sujo. Porque, na verdade, possui duas camas com tamanhos diferentes. Como já tem um golpe de vista preciso, ele direciona a vítima a esta ou aquela cama, de forma que nunca escape ninguém.
Procrusto é um personagem da mitologia grega que não tolera nada que seja diferente dele. Vencido por Teseu, foi amarrado à própria cama e bebeu do próprio veneno – ou melhor, também teve pés e cabeça ajustados a facão.
Procrusto e a Rainha de Copas do País das Maravilhas são os grandes inspiradores da tal Marcha da Família com Deus, que uma galera está organizando em prol de um novo golpe militar no país, como forma de prevenção a um delírio de cogumelo estragado que enxerga um ‘golpe comunista’ a caminho em 2014.
Sandices à parte, há alguns pontos na tal marcha que eu gostaria de entender:
- É para defender a família. Mas desde que seja formada por homem, mulher e filhos, certo? À imagem e semelhança da família sagrada, José, Maria e Jesus... Ops! Acho que não, afinal Jesus não era filho de José. Pai adotivo pode ser aceito? Acredito que sim.


- Família formada por mãe, outra mãe e filhos não entra? Afinal, relações homoafetivas não são de deus, são coisa antinatural. Tipo telefone celular, internet, teflon, forno de micro-ondas.
- Família formada por pai, outro pai e filhos, nem pensar também. Certo?
- Família formada por pai, filhos do primeiro casamento, esposa atual com filhos do casamento anterior pode ser aceita? Creio que sim – mas com ressalvas, porque é má influência.
- Família de ateus pode? Nem pensar. A marcha é com Deus, não entra gente desse tipo não.
- É para defender a família. Isso inclui a privacidade da família? Afinal, se o marido sai no braço com a mulher de vez em quando, é problema deles. Se corrigem os filhos no cinto, é porque estão preocupados com a educação das crianças. Ninguém tem que se meter, muito menos o governo. Não é assim?
- É para defender a democracia? Então, o que fazer com a eleição realizada há quase quatro anos? E com a maioria da população, que aprova o atual governo? É que essa maioria que aprova não sabe das coisas. É aquela gente diferenciada, que não lê a Veja. Aquela gente que teima em ficar recebendo bolsa família e não aceita aprender a pescar. Aquela gente que antes andava de ônibus e agora fica transformando aeroporto em rodoviária, comprando carro 1.0 financiado e congestionando o trânsito da cidade. Essa gente não sabe pensar sozinha e não sabe votar – precisa de alguém que tenha a coragem de tomar a frente.
- É para defender os direitos humanos dos humanos direitos. Quem são os humanos direitos? Aqueles que pensam como a gente? Afinal, tem muita diferença entre o menino que ficou um mês preso porque foi confundido com um ladrão e o meu sobrinho menor de idade que cometeu um ato falho e atropelou uma senhora usando o carro do pai. Meu sobrinho - loiro, alto, bem educado – não é ameaça para ninguém. Aquela pose marrenta de lutador de jiu-jitsu, levando o pit-bull na coleira, é só fachada. Ele é um doce. E a história de que tinha batido na namorada foi pura invenção dela. Já o rapaz que ficou preso no lugar do ladrão, coitado, tinha cara de marginalzinho mesmo, sabe? De pele escura.
- É para defender direitos iguais para todos? Sim, menos os da empregada doméstica, que agora pensa que é igual a gente, desde que ganhou direito a hora extra só porque trabalha 12 horas seguidas. Aliás, um absurdo ter que pagar hora extra para algo que sempre foi assim – a empregada chega para fazer o café da manhã e vai pra casa depois que lava a louça do jantar. E é tratada como se fosse da família! Ela votou no atual governo, faz parte do pessoal que não sabe pensar sozinho, não sabe o que é melhor para o país.
- É para defender o fim da corrupção? Sim, daqueles casos que saíram na Veja. Porque o meu agrado para o guarda não me multar na semana passada não foi corrupção. Guarda é assim mesmo, ele espera isso. Melhor o dinheiro ir direto para a mão dele, que é pai de família, do que para esse governo corrupto. Os três orçamentos que eu falsifiquei para ganhar a concorrência esse ano também não são corrupção – mas isso porque eu sei que presto o melhor serviço pelo preço mais justo.
- É para defender a tomada do poder por militares? Sim, mas só por três meses. Depois, eles devem convocar novas eleições, só com gente ficha limpa. Vai ser fácil, porque os militares não vão curtir ficar no poder. Já combinamos tudo com eles. E, se não fizerem o que queremos, convocamos novas marchas depois! Vivemos numa democracia. E os militares, se aceitarem nossa proposta e assumirem este país, não vão nos censurar. Nós vamos continuar com acesso irrestrito à internet, ao Facebook e a todas as redes sociais que usamos. Continuaremos livres para expressar nossas opiniões – afinal, em todas as ditaduras militares é assim, né? Essa história de censura, perseguição, tortura, ninguém sabe se existiu realmente. Cadê as marcas? Cadê as provas? Nós somos poderosos, somos a elite pensante deste país. Nós somos assinantes da Veja!
- Os militares vão acabar com a corrupção? É claro! Afinal, nenhum general enriqueceu na época da ditadura. Todos divulgaram suas declarações de renda anteriores e posteriores, bem como as de suas famílias. Todos abriram mão dos benefícios vitalícios e hereditários. O orçamento e as contas dos governos militares sempre estiveram abertos e à disposição da população. Não existem arquivos secretos, nem documentos que foram destruídos ou adulterados. Está tudo na internet, é só dar um Google. Essa história de abertura de arquivos, comissões da verdade, é tudo conversa de terrorista. Era uma guerra! Os bons contra os maus!!! Estamos em guerra de novo!
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Mais do que qualquer possibilidade remota de golpe militar, o que amedronta é essa sanha de uma parte da população pelo fim da democracia. E de forma tão infantil, tão desinformada, tão desrespeitosa.

Daniela Lepinsk Romio, jornalista que não faz parte dessa família, porque não quer deitar na cama de Procrusto nem ir pro pau-de-arara. E-mail: jornalista.daniela@uol.com.br

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Pela manhã, um amigo vela o corpo tão pequeno de sua filhinha, levada de repente por doença violenta.
À tarde, outro amigo recebe pela primeira vez a filha nos braços.
À noitinha, uma amiga publica o resultado positivo do teste de gravidez.
Tento ver um significado. Mas tenho apenas vislumbres de uma teia delicada, cujas conexões são complexas demais para minha compreensão.

Tristeza não tem fim.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O som do seu sorriso

Rafael falou com a filha. Após quase 18 meses sem ver e sem conversar, Rafael obteve de volta o direito de falar com a menina dele. Foram 55 minutos, por telefone. E ela sorriu.

Mas uma outra menina, de seis anos, foi queimada viva no Maranhão, durante um ataque ao ônibus em que estava com a mãe e a irmãzinha – também feridas pelo fogo. Morreu no hospital, levando consigo o bisavô, que não suportou a notícia do ataque e sofreu um infarto. Levou consigo também parte do coração da mãe, que será obrigada a conviver para sempre com as marcas da barbárie gravadas no corpo. Levou uma parte do coração de cada pessoa que leu sobre o ataque bruto e sem sentido.

Rafael estava nervoso, porque faz pós-graduação nos Estados Unidos e vinha, havia tempos, buscando o direito de falar com a filha, no Brasil. Escrevia cartas quase diárias a ela pelo Facebook, em uma página que chamou de “Ana Julia seu pai te ama”, para que um dia ela pudesse pesquisar o próprio nome na internet e descobrir que o pai a amava muito, sim, e sofria com a distância. Passou sozinho o próprio aniversário. Não deu parabéns no aniversário de nove anos dela. Não conversou na Páscoa. Não ouviu feliz Natal na voz da menina. No início de janeiro, ele se preparou para vê-la por meio de uma webcam.


E uma menina de 16 anos foi queimada viva na Índia, pelos familiares brutos de homens brutos que a haviam estuprado em conjunto. Em duas sessões brutas de horror. Mais uma vez, o país que é referência quando se fala em práticas espirituais elevadas, yoga, hare krishna e outros que tais, mostra que a elevação espiritual não é para todos. O descaso da Índia com suas mulheres e meninas é um crime pelo qual Buda chora sangue.

A conexão com a internet não funcionou e Rafael acabou conseguindo uma conversa por telefone. Sem perceber, a menina faz a pergunta mais delicada de todas, quando Rafael pede que ela sorria de novo. “Como você sabe que estou sorrindo se você não está me vendo?”. Como, menina? Você ainda não sabe, mas a gente percebe quando alguém com quem conversamos sorri. E a maior felicidade do seu pai nos últimos tempos foi ouvir o som do seu sorriso, misturado à sua voz.

Uma menina de 11 anos morreu após ter o cabelo sugado pelo ralo de uma piscina, no Espírito Santo. E outra, de oito anos, em Minas Gerais. As mortes poderiam ter sido evitadas por uma tampa especial. Que custa 50 reais. Mas não é obrigatória. A maioria das pessoas nem sabe que isso existe. Na verdade, a maioria das pessoas nem se lembra que o ralo da piscina existe. Mas essas meninas não foram as primeiras vítimas, e o país segue sem legislação que traga mais segurança à construção de piscinas. E a alegria da brincadeira continua se transformado, vez ou outra, em horror.

Rafael tem esperança. Busca sensibilizar quem lê sua página sobre os riscos da alienação parental – que é quando uma criança tem o pai ou a mãe excluídos de sua vida contra a vontade e sem razões concretas. Rafael obteve a primeira conquista. E o que ele mais temia não ocorreu: a menina foi simpática, amorosa, sorriu muito, disse que quer falar com ele de novo. Não desligou antes do tempo. Uma hora era o combinado – e, após cinco minutos de atraso, foram 55 minutos de redenção.

Rafael com sua menina trazem um pouco de delicadeza e esperança a este início de ano tão triste, violento, cruel. A menina de Rafael ganhou mais chances de sorrir. Nem todas as meninas têm a mesma sorte. Que 2014 finalmente comece, como um ano melhor.

(P.S.: Como o mundo não é cor-de-rosa, no segundo encontro virtual determinado pela Justiça entre Ana Julia e Rafael, a menina foi impedida de participar. Sem justificativas. Não há justificativa.)
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Daniela Lepinsk Romio, jornalista que escreve sobre coisas distantes, mas não consegue abordar a história do casal que mordeu, jogou no chão e deixou morrer o filhinho de dois meses em Cuiabá. Porque até mesmo a brutalidade precisa ter limite – e aquilo ultrapassou todos . E-mail: jornalista.daniela@uol.com.br

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Leminski seu cachorro louco, que bom que você existiu!

(Por Daniela Lepinsk Romio, jornalista que queria escrever como Leminski, mas é muito bundona para tanta ousadia. E-mail: jornalista.daniela@uol.com.br)

Paulo Leminski morreu adolescente. Aos 44 anos, em 7 de junho de 1989. Não deu tempo de largar a vida louca nem de terminar a livre-docência, o que ele só faria aos 70... mas a cirrose o pegou primeiro.

Quando eu tiver setenta anos
quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência
vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência
vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência 

Eu tinha 12 anos quando Leminski morreu. Estava começando a conhecer seus escritos. Com os anos, descobri que não sou muito da leitura de poemas. Falta-me paciência, sou da prosa. Bandeira, Neruda, Cecília, Drummond... gosto muito, mas leio pouco.

Agora, Leminski eu posso ler a qualquer hora. A despretensão do texto dele fala direto comigo. Brinco que somos parentes. Meu Lepinsk não tem o último ‘i’ por erro de cartório – quem garante que não houve confusão também entre o ‘p’ e o ‘m’? Quem?

Razão de ser
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

O texto do Leminski é gostoso. Transborda significado, mas o formato é simples como conversa de amigo. Há quem goste do rebuscamento de palavras – esses não vão curtir o Leminski. Eu não. O poder está no texto limpo, simples, direto e genial.



Ele não foi morto a pau e pedra. Nunca chegou aos 70 anos. Mesmo assim, se não viu tudo em sã consciência, meus agradecimentos à insana inconsciência, que permitiu ao Leminski trazer muito mais graça à nossa vida. Viva o cachorro louco!

O pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau e pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhadaputa
de fazer chover 
em nosso piquenique.


Dor elegante
Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nesse dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra

Bem no fundo 
No fundo, no fundo, 
bem lá no fundo, 
a gente gostaria 
de ver nossos problemas 
resolvidos por decreto 

a partir desta data, 
aquela mágoa sem remédio 
é considerada nula 
e sobre ela — silêncio perpétuo 

extinto por lei todo o remorso, 
maldito seja que olhas pra trás, 
lá pra trás não há nada, 
e nada mais 

mas problemas não se resolvem, 
problemas têm família grande, 
e aos domingos 
saem todos a passear 
o problema, sua senhora 
e outros pequenos probleminhas.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Todas as idades em mim

Vivem juntas na minha cabeça uma menina de 12 anos e uma senhora de 60. Às vezes a menina assume o controle. Dança, rodopia, canta desafinado. Faz piadas na hora errada, ri quando não deve rir. Tem ideias absurdas e dá soluções criativas para um monte de problemas. Surta quando vê arco-íris, lua cheia ou bicho de nuvem. Vê o mundo como brinquedo, um cubo mágico. Só que, no cubo mágico dela, não é preciso deixar cada cor de um lado. A graça é justamente misturar as cores cada vez mais, em combinações diferentes, da forma que ficar mais bonito.
Às vezes quem comanda é a senhora... aí ela ouve jazz e MPB, lê livros de adulto e deixa de lado as trilogias de mundos fantásticos. Guarda dinheiro na poupança. Acorda cedo, não usa a soneca do despertador, trabalha duro. É intolerante com preconceitos, com discriminação. Lava a louça, arruma o guarda-roupa. Desconfia de quem desperdiça o tempo e a vida, pois tempo é algo que valoriza muito. É ponderada, não fala palavrão, ouve sempre todos os lados e busca soluções factíveis para seus problemas.

Quando a menina assume as rédeas de novo, gasta parte da poupança em sapatos e maquiagens maravilhosas. Corta o cabelo sozinha. Compra um par de botas novas e um anel enorme. Lê livros de criança e se entope de chocolate, brigadeiro e Doritos. Vai à piscina de noite. Toma sol sem protetor e fica ardida. Deixa a gata dormir na cama dela. Deixa a louça na pia. Passa o dia de pijama e pinta as unhas de azul.

O que irrita bastante a senhora. Ela tem muito trabalho indo ao salão para corrigir as barbaridades que a menina fez no cabelo. Tira o azul das unhas e passa nude, muito elegante. Toma suco verde sem açúcar para livrar o corpo das toxinas de tanto Doritos e chocolate. Usa muito protetor solar e mantém os cabelos hidratados e escovados. Mas aprova as ideias que a menina teve para solucionar aquele problema no trabalho. É que a menina é danada de esperta.

Quando ela volta, abandona a escova e usa a cabeleira toda arrepiada de novo. Ouve rock muito alto, mas se emociona com Billie Holiday. Escreve textos sem nexo, joga fora e escreve de novo. A senhora corrige alguns textos, edita, dá sugestões. A menina aceita algumas, outras não. A senhora sorri, mais tolerante com aquela presença barulhenta. A menina se sente tão bem depois de tanto suco verde que vai lá e detona mais uns Doritos. A senhora não se importa.

Leem juntas um livro. As duas se emocionam em passagens diferentes e, às vezes, na mesma passagem... A senhora reza, mesmo sem saber direito no que acredita. A menina, não. Mas ela dança sozinha na sala, no escuro, chorando, e esse é o jeito dela de rezar. A menina tem medos que a senhora não tem mais. Mas também tem coragens que a senhora nunca teria sozinha. Às vezes ela precisa de colo, como toda menina, e a senhora está sempre ali para essas horas também.


Elas têm brigado menos ultimamente. A menina anda um pouco mais doce, enquanto a senhora ficou mais flexível. Bem devagar, vão aprendendo a conviver e a se respeitar. Mas a menina nunca vai crescer e a senhora já nasceu velha. Por isso, o conflito estará sempre lá, para não me deixar cair no comodismo de ter ‘uma certa idade’. Tenho todas, dos 12 aos 60 e mais outras. Mil vezes essa inquietude na mente do que uma vida enquadrada em convenções que nunca vão me comportar.

Daniela Lepinsk Romio, jornalista que faz 36 anos (60+12=72 e 72/2=36, bem na média!) dia 04 de março e está feliz da vida porque adora fazer aniversário.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Cuba, um blog e gente que dá vergonha

Sobre Cuba, pouco sei. Não confio em nenhuma notícia nem estatística oficial de um país onde não existe liberdade de expressão (não, não comparem com o Brasil!) e que fazia de seus cidadãos prisioneiros até outro dia.

Sobre Yoani Sánchez, também sei pouco, embora acompanhe sua história há alguns anos. Ela tem o meu apoio só por se insurgir, por falar, por expor faces da ilha cuja existência os fanáticos teimam em não reconhecer.

Mas estou cheia de gente grossa, que fica dando munição pras Vejas da vida.

Estou cheia de gente que enche a boca para defender Cuba sem ter, nunquinha, pisado na ilha. Que procura justificar os desmandos da ditadura de Fidel - mas sem abrir mão de celular, computador, internet, casa própria, cozinha planejada, carro bacaninha. Falo de Fidel porque, bem ou mal, Raul Castro está permitindo que se acendam lanterninhas dentro do túnel.

Estou com vergonha dessa gente que hostiliza sem dar chance ao diálogo.

Aos nostálgicos por Cuba, tenho uma sugestão: se lá é tão bom, se muda, cara. Faz a mala e vai para a ilha. Aqui, no Brasil, você será bem-vindo de volta, se se arrepender.

Mas pare com esse papel cretino de agredir a blogueira como se ela fosse o Renan Calheiros. É rude, é ridículo, é vexatório.

Daniela Lepinsk Romio, jornalista. E-mail: jornalista.daniela@uol.com.br

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Eu sou bicho, sou força da natureza

Então meu filho nasceu. Enquanto alguém me suturava, ele foi levado para outra sala. Demorou e demorou mais um pouco. E de repente a médica trouxe o pacotinho, aquele rostinho bonito, dormindo.

Abre parênteses: tenho fotos para provar que Caio nasceu lindo. Não tinha cara de joelho. Nasceu um pouco antes do previsto, então não ficou encaixado e apertado entre meus ossos pélvicos, por isso a carinha sem inchaço, a cabeça redondinha, uma criança de filme. Fecha parênteses.  

A médica trouxe o Caio para perto do meu rosto. E aí eu me encostei e cheirei a cabeça dele...  
E o mundo parou. Ninguém tinha me avisado do impacto que é o cheiro do filho da gente. Não dá para descrever, mas é uma sensação completamente animal. Eu ainda visualizo o caminho que aquele cheiro quente e meio doce percorreu das minhas narinas até o meu cérebro e pelo meu corpo inteiro, ficando gravado para sempre. Reconheceria o cheiro do meu bebê em qualquer lugar do mundo.  

Naqueles segundos eu me descobri bicho. Animal. Irracional. Forte. Poderosa. Brava. Só instinto. E foi muito bom! Ali eu sabia que amaria aquela criaturazinha acima de qualquer outra. Que cuidaria. Defenderia. Educaria. Mataria em sua defesa. Morreria em sua defesa.  

Antes que você torça o nariz: ele não estava com cheiro de sangue, nem de placenta, nem dos líquidos todos que envolvem um recém-nascido. Meu filho nasceu com agenesia da mão esquerda e, por isso, foi levado às pressas antes que eu o visse. Foi examinado primeiro e,quando chegou ao meu colo, já estava todo limpinho. Também não era cheiro de sabonete, porque ele não foi lavado com sabonete.   

Era simplesmente o cheiro dele, que eu busquei depois durante anos a cada vez que ele passava perto de mim. A cada vez que eu enterrava meu nariz nos cachinhos castanhos do meu leão, sempre identificava o mesmo cheiro, por baixo de qualquer outra coisa: sabonete, shampoo, creminho, bala, chocolate, terra, leite, ou outros odores menos agradáveis.


Aí nasceu Alice. E foi igualzinho. Só que eu já sabia. Estava preparada. Pude antecipar, apreciar a espera e esvaziar bem os pulmões antes de cheirar pela primeira vez a cabecinha loira, o rosto amassadinho e inchado da minha passarinha. Não me canso de cheirar aquela menina querida, o tempo todo que passo com ela.  

O mais curioso é que o cheiro do Caio mudou completamente, agora que ele é um adolescente. Claro que ainda o abraço, e muito, mesmo que esteja saindo da Educação Física. Mas prefiro quando sai do banho e se borrifa com os boticários da vida... Sou uma força da natureza – e a natureza sabe das coisas. Ele agora está se transformando em um homem – o cheiro de filhote não existe mais. Ele não precisa mais de tanta proteção, de tanto apoio para tudo.  

Mas eu ainda morreria – e, sem dúvida nenhuma, mataria – por ele. Sou um bicho.  

Daniela Lepinsk Romio é cronista, jornalista e animal. E-mail: jornalista.daniela@uol.com.br