sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Pela manhã, um amigo vela o corpo tão pequeno de sua filhinha, levada de repente por doença violenta.
À tarde, outro amigo recebe pela primeira vez a filha nos braços.
À noitinha, uma amiga publica o resultado positivo do teste de gravidez.
Tento ver um significado. Mas tenho apenas vislumbres de uma teia delicada, cujas conexões são complexas demais para minha compreensão.

Tristeza não tem fim.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O som do seu sorriso

Rafael falou com a filha. Após quase 18 meses sem ver e sem conversar, Rafael obteve de volta o direito de falar com a menina dele. Foram 55 minutos, por telefone. E ela sorriu.

Mas uma outra menina, de seis anos, foi queimada viva no Maranhão, durante um ataque ao ônibus em que estava com a mãe e a irmãzinha – também feridas pelo fogo. Morreu no hospital, levando consigo o bisavô, que não suportou a notícia do ataque e sofreu um infarto. Levou consigo também parte do coração da mãe, que será obrigada a conviver para sempre com as marcas da barbárie gravadas no corpo. Levou uma parte do coração de cada pessoa que leu sobre o ataque bruto e sem sentido.

Rafael estava nervoso, porque faz pós-graduação nos Estados Unidos e vinha, havia tempos, buscando o direito de falar com a filha, no Brasil. Escrevia cartas quase diárias a ela pelo Facebook, em uma página que chamou de “Ana Julia seu pai te ama”, para que um dia ela pudesse pesquisar o próprio nome na internet e descobrir que o pai a amava muito, sim, e sofria com a distância. Passou sozinho o próprio aniversário. Não deu parabéns no aniversário de nove anos dela. Não conversou na Páscoa. Não ouviu feliz Natal na voz da menina. No início de janeiro, ele se preparou para vê-la por meio de uma webcam.


E uma menina de 16 anos foi queimada viva na Índia, pelos familiares brutos de homens brutos que a haviam estuprado em conjunto. Em duas sessões brutas de horror. Mais uma vez, o país que é referência quando se fala em práticas espirituais elevadas, yoga, hare krishna e outros que tais, mostra que a elevação espiritual não é para todos. O descaso da Índia com suas mulheres e meninas é um crime pelo qual Buda chora sangue.

A conexão com a internet não funcionou e Rafael acabou conseguindo uma conversa por telefone. Sem perceber, a menina faz a pergunta mais delicada de todas, quando Rafael pede que ela sorria de novo. “Como você sabe que estou sorrindo se você não está me vendo?”. Como, menina? Você ainda não sabe, mas a gente percebe quando alguém com quem conversamos sorri. E a maior felicidade do seu pai nos últimos tempos foi ouvir o som do seu sorriso, misturado à sua voz.

Uma menina de 11 anos morreu após ter o cabelo sugado pelo ralo de uma piscina, no Espírito Santo. E outra, de oito anos, em Minas Gerais. As mortes poderiam ter sido evitadas por uma tampa especial. Que custa 50 reais. Mas não é obrigatória. A maioria das pessoas nem sabe que isso existe. Na verdade, a maioria das pessoas nem se lembra que o ralo da piscina existe. Mas essas meninas não foram as primeiras vítimas, e o país segue sem legislação que traga mais segurança à construção de piscinas. E a alegria da brincadeira continua se transformado, vez ou outra, em horror.

Rafael tem esperança. Busca sensibilizar quem lê sua página sobre os riscos da alienação parental – que é quando uma criança tem o pai ou a mãe excluídos de sua vida contra a vontade e sem razões concretas. Rafael obteve a primeira conquista. E o que ele mais temia não ocorreu: a menina foi simpática, amorosa, sorriu muito, disse que quer falar com ele de novo. Não desligou antes do tempo. Uma hora era o combinado – e, após cinco minutos de atraso, foram 55 minutos de redenção.

Rafael com sua menina trazem um pouco de delicadeza e esperança a este início de ano tão triste, violento, cruel. A menina de Rafael ganhou mais chances de sorrir. Nem todas as meninas têm a mesma sorte. Que 2014 finalmente comece, como um ano melhor.

(P.S.: Como o mundo não é cor-de-rosa, no segundo encontro virtual determinado pela Justiça entre Ana Julia e Rafael, a menina foi impedida de participar. Sem justificativas. Não há justificativa.)
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Daniela Lepinsk Romio, jornalista que escreve sobre coisas distantes, mas não consegue abordar a história do casal que mordeu, jogou no chão e deixou morrer o filhinho de dois meses em Cuiabá. Porque até mesmo a brutalidade precisa ter limite – e aquilo ultrapassou todos . E-mail: jornalista.daniela@uol.com.br